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Política

Solução para Bolsa Família é eleitoral e ameaça crescimento, dizem especialistas

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A ideia de elevar o Bolsa Família para R$ 400 mensais com parte do valor a ser contabilizada fora do teto de gastos reflete interesses eleitorais e, na prática, viola o teto de gastos. Uma iniciativa nesse sentido pode piorar ainda mais a percepção de risco do mercado e as condições financeiras, com pressão maior em juros e câmbio e comprometendo o crescimento da economia. Essa é a avaliação de especialistas em contas públicas ouvidos pelo Valor.

 

Embora não se saiba ao certo qual parcela do novo benefício ficaria fora do teto, diz o economista Carlos Kawall, diretor da Asa Investments, “está claro que existe a tentação do populismo eleitoral e isso é o que está prevalecendo para esses R$ 400”.

Como o tema deve ser tratado em proposta de emenda à Constituição (PEC), corre-se o risco de o Congresso buscar um espaço fiscal adicional muito maior, acrescenta o ex-secretário do Tesouro Nacional. “Fica a sensação clara de que todos os temores de viés populista estão se confirmando. Resta ver qual o limite da equipe econômica, que pode ficar bastante desconfortável”, afirma.

Para Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), a ideia parece mais um “balão de ensaio” que, se confirmada, é “muito preocupante” e viola o teto de gastos. A regra constitucional, diz ele, incide sobre todos os gastos. Despesas fora do texto só existem via crédito extraordinário, em situação de calamidade ou emergência, como foi o caso da pandemia, indica.

O governo pode tentar justificar a ideia dizendo que a situação ainda é de calamidade e que os efeitos da pandemia persistem, já que o desemprego está elevado, diz. “Mas criar programa permanente por crédito extraordinário fere frontalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal e não só o teto de gastos”, avalia. Salto aponta ainda riscos de que outros gastos permanentes sejam criados fora do teto.

A ampliação do gasto social, defende, é necessária, tendo em vista o cenário com desemprego pouco abaixo de 14% e a intensificação das taxas de pobreza. “Não há contraposição de interesse social e responsabilidade fiscal. Precisa haver cortes para enquadrar esses gastos.”

 

Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da RPS Capital, também não vê possibilidade de justificar o pagamento de parte do Bolsa Família fora do teto de gastos. “É um enorme equívoco insistir numa saída que fragiliza o arcabouço fiscal, como tem sido desde o começo. Muitos parlamentares e membros do Executivo estão se valendo das pessoas socialmente mais vulneráveis como escudo para um falso debate sobre o aumento do auxílio”, diz.

É como se quem questionasse as propostas do governo fosse contra a rede de proteção social. “É uma estratégia de narrativa política para omitir interesses eleitorais e mesmo questionáveis no uso do recurso público, que são as emendas parlamentares”, afirma.

Para Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, o mesmo discurso que diz que é preciso “cuidar do social” e, por isso, o teto é menos importante poderia não aprovar emendas de relator ou o aumento de recursos para financiamento de campanha, por exemplo.

Mendes, que já foi assessor especial do antigo Ministério da Fazenda no governo de Michel Temer, avalia que a raiz do problema é também política. Com o sistema eleitoral-partidário brasileiro pulverizado, o Executivo precisa formar coalizão no Congresso, mas com força para coordená-la. Isso requer, segundo o economista, uma Casa Civil e uma Secretaria de Governo eficientes, afinadas e com poder de comandar essa agenda.

“Tanto no governo Dilma quanto no governo Bolsonaro, o que se viu foi o contrário dessa receita. Eles confrontaram o Congresso, cuja resposta foi se apropriar do Orçamento. Especificamente no caso do Bolsonaro, quando ele resolveu conversar com o Congresso, não formou uma coalizão em que comanda, mas se submeteu às lideranças políticas”, afirma.

 

Para ele, nesse contexto, perde um pouco relevância a discussão sobre o ministro Paulo Guedes deixar ou não o cargo. “Ele já é refém dessa situação política. Talvez, ele tenha um pouco mais de capacidade de resistência do que outro que aceite no lugar dele. É possível que haja alguma defecção na equipe técnica, além das muitas que já ocorreram, mas, hoje, o ministério da Economia não só é refém dessa captura da agenda política, como, de certa forma, já está aceitando trabalhar com ela.”

Do ponto de vista do que acontece hoje, está se construindo e “decretando o fim do teto”, afirma Mendes. “Uma vez abrindo essas exceções, vai ficar claro que, sempre que precisar, terá disponibilidade para fazer.”

O que está em jogo agora, diz, é o retorno a um regime fiscal pré-teto. “É um regime que gasta o máximo possível e financia com dívida. Além disso, é pró-cíclico, você aumenta o gasto no período de crescimento econômico e gera um desequilíbrio fiscal; na hora da recessão, tem que cortar gastos. Ou seja, em vez de suavizar os ciclos econômicos, você acentua e está sempre às voltas com risco de insustentabilidade da dívida, de choque tributário para lidar com a próxima crise fiscal, mais inflação, incerteza e volatilidade”, explica.

Isso “envenena a possibilidade de crescimento econômico”, afirma Mendes, enquanto níveis de preços maiores, juro real mais alto e menos crescimento também acabam “atuando contra o social, porque não abre espaço para empregar as pessoas e a inflação corrói a renda dos mais pobres”, acrescenta.

Para Barros, da RPS, “o mercado tem que reagir mal mesmo; se o governo insistir nisso, vamos colocar o Brasil em grande recessão.”

 

Na sua avaliação, o mercado até, de certa forma, assimilaria um Bolsa Família de R$ 300 com 17 milhões de beneficiários, com a PEC dos precatórios abrindo espaço e uma despesa adicional de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões. “Mas agora seriam mais R$ 30 bilhões, com a hipótese de a conta ficar ainda maior; R$ 30 bilhões é muito dinheiro, mas não parece significativo no mundo político. Começou com R$ 30 bilhões, agora são mais R$ 30 bilhões e daqui a pouco serão R$ 90 bilhões, 100 bilhões”, diz ele.

A reação dos mercados, que já está sendo negativa, pode piorar ainda mais, embora ainda seja preciso verificar como será o trâmite da proposta, diz Barros. O resultado, concreto, aponta, é menos crescimento e mais inflação. “E coloca uma probabilidade crescente de precisarmos de alta de juros acima de 9% para a Selic ao fim do ciclo.” Para Kawall, da ASA, os juros podem chegar a 9,5% ou 10% ao fim do ciclo, caso essa mudança seja efetivada.

“Sem dúvida a reação do mercado à proposta será negativa”, diz Salto, com repercussão também para as contas públicas. Ele destaca que a despesa com juros do governo federal em agosto deste ano já é 36% maior ante igual mês do ano passado e que o custo médio dos títulos lançados pelo governo vem aumentando. “Soluções de improviso, atabalhoadas, sem respaldo nas regras fiscais provavelmente serão encaradas como incremento na percepção de risco maior, aumentando não só a Selic como também os juros do mercado para diferentes prazos, o que eleva custo do crédito e causa retração de investimentos.”



Fonte: Valor Investe

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