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Putin aproveita guerra na Ucrânia para acabar com liberdade de expressão na Rússia

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Quando os entrevistados de uma pesquisa recente feita pelo Centro Levada, uma instituição independente de pesquisas de opinião,  foram perguntados sobre os maiores problemas que a Rússia vem enfrentando, mais da metade citou a inflação. Curiosamente, a guerra na Ucrânia, conhecida ali como “operação militar especial”, ficou em segundo, com 29%, empatada com a corrupção.

“A princípio, está tudo mais caro. Não mudei meus hábitos de compra no supermercado, mas tenho um automóvel de luxo de marca ocidental e não consegui trocar por um modelo mais novo. Para começar, nem tem carro para vender. A maioria das montadoras internacionais saiu do país; ficaram só as chinesas”, afirmou Aleksandr, de 64 anos, que se identificou como diretor executivo de uma empresa.

Uma das explicações para a política, incluindo as decisões do governo russo sobre a guerra na Ucrânia, ter ficado de lado na pesquisa é que liberdade de expressão tem diminuído na Rússia. A eleição municipal é um indicador das mudanças na política nacional: uma década atrás, a briga foi entre Alexei Navalny e Sergey Sobyanin. Hoje, o primeiro se encontra na cadeia e não há adversários de verdade para ameaçar o segundo, que, aos 65 anos, ganhou a segunda reeleição com uma margem inédita de 76% dos votos válidos.

Os outros partidos, inclusive o Comunista, apresentaram nomes para a disputa, mas são todos considerados “oposição sistêmica”, ou seja, grupos que estão no Parlamento como vozes discordantes apenas nominalmente, mas que se alinham às políticas do Kremlin em praticamente todas as questões. “Antes da guerra, eu ainda votava, mas agora não quero mais. O resultado parece mais do que óbvio, né?”, alegou Vyacheslav Bakhmin, presidente do Moscow Helsinki Group, grupo de defesa dos direitos humanos mais antigo da Rússia.

Uma vez que Putin comanda um conflito que não tem previsão de acabar, as autoridades passaram a limitar as expressões públicas de dissidência para garantir que tudo ande dentro da maior normalidade possível.

Segundo Alexei Venediktov, que foi responsável pela rádio liberal Echo of Moscow até ser desativada pelo Kremlin, no ano passado, o governo se empenha para eliminar o conflito nos espaços políticos.

“A guerra está na TV e no Telegram, mas não na rua. Não é nem discutida nos cafés e restaurantes porque é perigoso, porque as leis são repressoras. Várias pessoas que se manifestaram contra a invasão foram denunciadas por gente que se senta ao lado delas no metrô, na lanchonete, inclusive até levando queixas à polícia. O pessoal prefere se calar, não tocar no assunto, e isso se reflete no clima geral.”

No centro financeiro, área conhecida como Moscow City, muita gente simplesmente não tomou conhecimento da série de ataques de drone que danificou alguns edifícios, mas não feriu ninguém. Uma mulher que disse trabalhar nas imediações, Olga, apenas balançou a cabeça enquanto a colega ao seu lado minimizava o potencial de perigo; mais tarde, porém, ela enviou ao jornalista do “The New York Times” uma mensagem via Telegram.

“Não pude dizer nada porque o pessoal do trabalho tem uma visão diferente da minha. Sou contra a guerra e odeio nosso sistema político. Quando há um ataque de drones aqui na Rússia, sempre torço para que comecem a pensar no que significa viver sob bombardeio constante e a lamentar a perda da vida normal antes da guerra. Contanto que as explosões não resultem em vítimas, não estou nem aí para os danos. São só prédios”, disse.

Para Venediktov, mesmo que seja difícil ver as mudanças na cidade, e mais ainda falar sobre elas, as pessoas estão se transformando internamente. “O pessoal está começando a voltar ao hábito dos tempos soviéticos, quando as conversas em público podiam resultar em problemas no trabalho. É um processo bem lento, mas muito parecido com o envenenamento.”

Guerra invisível

Os trens do metrô estão operando normalmente em Moscou, como sempre, mas andar de carro pelo centro ficou mais complicado – e irritante, porque o radar antidrone interfere nos aplicativos de navegação.

Um ano e sete meses depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, o moscovita vive uma realidade dupla: a guerra perdeu força, a tal ponto que se tornou ruído de fundo, interferindo muito pouco, mas, apesar disso, continua sempre presente no dia a dia.

Este mês, a capital ficou coberta de bandeiras nas cores nacionais (vermelho, branco e azul) para a comemoração anual de seu 876º aniversário. Seus líderes marcaram a ocasião com uma exposição de um mês de duração, encerrada em dez de setembro, com o maior holograma da cidade mostrando a metrópole de 13 milhões de habitantes como um núcleo urbano organizado, bem administrado e com um futuro brilhante pela frente. Segundo os organizadores, foi vista por mais de sete milhões.

Os ataques a drones que foram cometidos aqui em meados deste ano pouco afetaram a população, e não houve nem sirenes alertando para uma possível investida. Quando há atrasos nos voos por causa da ameaça representada pelos equipamentos na área, a explicação é geralmente a mesma estampada nas placas dos hotéis butique de estilistas ocidentais para explicar seu fechamento: “razões técnicas”.

A cidade continua a crescer, com guindastes pontilhando a paisagem e arranha-céus subindo por toda parte. Grifes novas, algumas nacionais, substituíram os nomes internacionais, incluindo Zara e H&M, que saíram do país depois da invasão, em fevereiro de 2022.

“Continuamos a trabalhar, a viver, a criar os filhos”, comentou Anna, de 41 anos, enquanto passava por um memorial na calçada para marcar a morte do líder do Grupo Wagner, Yevgeny Prigojin. Ela se identificou como funcionária pública, mas, como outros entrevistados, não deu o sobrenome por medo de retaliação.

Para alguns, porém, os efeitos do conflito são mais pronunciados. É o caso de Nina, aposentada de 79 anos que fazia compras no Auchan, supermercado na zona noroeste. “Tive de parar de comprar carne vermelha de vez, e quase nunca tenho condições de comprar um peixe inteiro. Este mês mesmo, os preços subiram terrivelmente, um pouco por causa das sanções e dos projetos novos de construção, mas principalmente por causa dos gastos com a guerra. Por que foram inventar? É um fardo para o país, para o povo, para tudo. Sem contar que a população está sumindo, principalmente os homens.”

 

por The New York Times | Valerie Hopkins

Crédito Foto NANNA HEITMANN/THE NEW YORK TIMES 23.08.23

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