Jotta A, de 24 anos, vive fase de descobertas após abandonar carreira gospel — Foto: Arquivo Pessoal via BBC
Jotta A vivia o auge da carreira musical no meio gospel. Acumulava milhões de visualizações em seus vídeos em diversos países, tinha fã-clubes, já havia recebido indicação ao Grammy Latino e era sensação em eventos evangélicos.
Um fenômeno que ecoava em rádios do Brasil e de outros países latino-americanos, por suas diversas músicas gravadas em espanhol. Era a história de superação da criança que nasceu no município de Guajará Mirim, em Rondônia, enfrentou dificuldades ao se mudar para São Paulo em busca do sonho de viver da música e alcançou o sucesso.
Mas isso não era sinônimo de felicidade para ela. Em meio à pandemia de covid-19, com shows adiados e sem perspectiva sobre a retomada da rotina, passou uma fase que define como de “muita solitude”, olhou para si e decidiu que não queria mais viver daquela forma.
Nesse período, decidiu que precisava se conhecer melhor. O primeiro passo foi abandonar a música gospel, ela conta.
“Tive que abrir mão de uma estabilidade, de uma carreira construída, para viver a minha verdade. Digo abrir mão porque viver a verdade ainda é um tabu muito grande. Para que eu pudesse buscar o autoconhecimento, tive, de certa forma, que abrir mão de toda a comodidade que uma carreira brilhante me trouxe”, diz.
Dois anos depois, iniciou o processo para alterar os documentos para o gênero feminino. O nome que no passado era artístico fará parte de seus registros oficiais: Jotta.
Artista começou a cantar ainda na infância e talento musical logo chamou a atenção — Foto: Arquivo Pessoal via BBC
Carreira musical
O passado e o presente de Jotta são conectados principalmente pela atividade que ela considera que a mantém viva: a música.
A carreira musical dela começou na igreja evangélica, quando ainda era muito nova. “A igreja é um local de muita musicalidade, eu ouvia muita música e isso despertou um desejo muito grande. Meus pais viram que talvez eu tivesse talento e me incentivaram muito”, relembra.
Na infância, costumava ouvir e cantar música gospel – e o talento chamava a atenção. Aos seis anos, gravou o primeiro CD. Quando a família se mudou para São Paulo, Jotta se inscreveu no programa de calouros do apresentador Raul Gil. Ela, que estava no início da adolescência, venceu a disputa e se tornou conhecida nacionalmente.
“Depois disso, recebi inúmeros convites para gravar CD em inglês ou em espanhol e nunca mais parei”, diz.
Em 2014, o seu segundo álbum foi indicado ao Grammy Latino na categoria de música cristã em língua portuguesa. Naquele ano, o prêmio foi vencido pela cantora brasileira Aline Barros.
Ao longo da carreira gospel, Jotta foi responsável por inúmeras músicas de sucesso em português e espanhol. No YouTube, os vídeos antigos da artista acumulam milhões de visualizações – um deles com mais de 76 milhões.
“Vivi muitos momentos que posso dizer que foram especiais na minha carreira, momentos de muito status em que cheguei a lugares altos que eu nunca imaginei. Eu sou uma pessoa nortista, de uma família que não tinha uma condição financeira boa e conquistei várias coisas incríveis”, avalia a artista.
E foi justamente no auge da carreira, com possibilidade de crescer ainda mais, que Jotta A decidiu mudar a própria história.
“Eu percebi que precisava fazer por mim mesma, não fazer pela minha carreira, não fazer por todos aqueles prêmios que eu poderia conquistar pela minha música, mas por mim mesma. Então foi o momento em que entendi que, de fato, precisava me autoconhecer”, comenta.
Imagem mostra momento em que Jotta A se preparava para ir ao cartório para iniciar processo de mudanças em documentos — Foto: Arquivo Pessoal via BBC
Enquanto o mundo enfrentava a dura batalha contra a covid-19, Jotta A usou o período de isolamento social para viver uma fase de busca por respostas sobre o próprio futuro.
“A pandemia foi um momento difícil para muitas pessoas e perdi pessoas importantes na minha vida. Mas também foi um momento em que eu tinha uma agenda lotada, cancelaram tudo e eu não sabia o que fazer. Eu precisava me libertar. Foi quando falei: ‘puxa, talvez esse seja também um momento de solitude no qual posso decidir de vez o que fazer'”, diz.
A Jotta
Hoje, aos 24 anos, a artista avalia que sempre se enxergou como uma mulher transgênero. “Com certeza desde criança sempre me entendi como uma mulher, mas nunca tive oportunidade de exteriorizar tudo isso”, reflete.
Ela desconhecia a realidade de mulheres trans e só teve o primeiro contato com uma quando tinha cerca de 16 anos. “Até então, tudo o que eu tinha à vista era a experiência cisgênero (pessoas que se reconhecem com o gênero que nasceram), então pensava que nunca seria uma mulher porque nunca teria um útero ou uma vagina. Esse meu primeiro contato com uma mulher trans me fez ver que eu não preciso ser uma mulher cisgênero para ser uma mulher na sociedade. Então, ali me senti representada”, conta.
Quando iniciou a transição de gênero, a cantora decidiu falar sobre o assunto aos poucos por medo da exposição. O principal temor era como o público religioso e conservador encararia o fato de ela ser uma mulher trans.
“Primeiro eu falei para as pessoas que eu era uma pessoa não-binária (que não se identifica no gênero masculino ou feminino). Foi uma maneira que considero que pode ser mais leve. Foi o primeiro passo. E só agora, há alguns dias, estou podendo falar para as pessoas quem eu sou de verdade”, diz.
Foi em 11 de abril que Jotta revelou ser uma mulher transgênero, por meio de uma publicação no Instagram na qual aparece em uma rua de São Paulo com um visual diferente do habitual: tranças na altura do ombro, roupas femininas, um salto alto e uma bolsa no ombro.
“Essa sou eu indo ao cartório para fazer a primeira solicitação de retificação do meu nome de registro”, escreveu no início do post.
Na publicação, explicou que escolheu manter o nome artístico por “ser uma maneira de estar atrelada sempre” à própria história. “Recomeçar não é fácil, mas estou feliz, por estar vivendo todo esse processo. Feliz em ter tantas pessoas que me apoiam e acreditam em mim nessa nova etapa”, concluiu no texto na rede social.
E ali começou publicamente a vida da Jotta, que passou a compartilhar inúmeras fotos do seu cotidiano.
“Depois do momento de solitude tão especial, que começou dois anos atrás, agora estou podendo externar tudo isso e está sendo incrível”, diz a cantora à BBC News Brasil.
Nesses últimos anos, ela fez terapia, mudou o próprio visual algumas vezes e recentemente deu início à terapia hormonal.
O procedimento para mudar os documentos ainda está em andamento. “Fiz a petição no cartório de São Paulo, mas antes tive que receber minha certidão (de nascimento) que veio de Rondônia”, explica sobre o processo, que ainda não tem prazo para conclusão.
Jotta A pretende lançar álbum de música pop em breve — Foto: Arquivo Pessoal via BBC