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Antes do coronavírus: a esquecida gripe de Hong Kong, epidemia que matou mais de 1 milhão há 5 décadas
A Humanidade tem enfrentado pragas e pandemias de doenças ao longo de milhares de anos.
A peste negra, a gripe espanhola e a varíola deixaram milhões de mortos ao redor do mundo em épocas distintas.
As lembranças da epidemia de poliomielite, que atingia principalmente as crianças até que surgisse uma vacina, até hoje causam dor e espanto.
Todas elas provocaram uma redução na população e também impulsionaram progressos médicos e melhorias no sistema de saúde pública.
Todas causaram também enormes desafios socioeconômicos, como vemos na atual pandemia de coronavírus, que já matou ao menos 315 mil pessoas desde dezembro de 2019.
Mas enquanto livros preservaram algumas dessas epidemias, outras caíram no esquecimento.
É o caso de uma gripe catastrófica em 1968. Em setembro daquele ano, um patógeno agressivo se espalhou pelos Estados Unidos. Ele seria batizado depois de gripe de Hong Kong, local onde o primeiro caso foi identificado.
Essa foi uma das três grandes pandemias de gripe do século 20: a espanhola em 1918–20, a gripe asiática de 1957–58 e a de Hong Kong, que foi de 1968–1970.
A primeira foi a mais agressiva e grave de todas. Causada pelo H1N1, levou ao menos 40 milhões de pessoas à morte. A segunda, com o H2N2, matou 2 milhões. A terceira, do H3N2, tirou a vida de 1 milhão.
“Tanto a gripe asiática quanto a gripe de Hong Kong foram esquecidas logo em seguida”, relata Anton Erkoreka, diretor do Museu Basco de História da Medicina e especialista em história das doenças, em entrevista à BBC Mundo (serviço da BBC em espanhol).
“As medidas adotadas na época não foram excepcionais, e acabou considerada apenas mais uma gripe.” E assim, segundo ele, se esqueceu o que aconteceu e os ensinamentos que a epidemia trouxe.
“As gripes vêm sempre com uma conotação benigna de que matam apenas idosos com comorbidades, por isso foram sempre banalizadas socialmente”, diz Erkoreka.
A gripe de Hong Kong chegou ao Ocidente no momento em que monopolizavam os holofotes o pouso na Lua, a Guerra do Vietnã e dos protestos a favor dos direitos civis.
Em 1968, a filha pequena de Phillip D. Snashall, professor emérito de medicina da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, contraiu a gripe de Hong Kong. E ninguém soube como isso aconteceu.
O pai dela contou ao British Medical Journal que apenas alguns médicos e uma publicação especializada souberam disso.
“A Bolsa de Valores não entrou em colapso, a imprensa não nos perseguiu e nenhum homem com equipamentos respiratórios parou as brincadeiras da minha filha.”
No entanto, no Natal de 1968, hospitais em todos os 50 Estados americanos começaram a receber diversos pacientes, assim como acontece com a covid-19.
Uma catástrofe global
Nova York decretou estado de emergência e Berlim foi obrigada a guardar cadáveres nos túneis de metrô.
Pacientes inundaram hospitais de Londres, onde pelo menos 20% das enfermeiras foram infectadas, segundo o jornal The Telegraph.
Em algumas regiões da França, o vírus deixou metade da força de trabalho de cama, e ao menos 30 mil mortos ao longo de dois anos.
Algo semelhante ocorreu no Reino Unido e na Alemanha, que registrou mais de 60 mil mortes.
Ao todo, em 1968 e 1969 morreram por causas relacionadas à gripe de Hong Kong cerca de 1 milhão de pessoas ao redor do mundo.
Só nos Estados Unidos, a cifra superou mais de 100 mil mortes, uma proporção três ou quatro vezes maior que a média anual de mortes por gripe desde 2010, segundo o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.
Os mortos por covid-19 ainda não são tão numerosos. Mas ambas as pandemias têm em comum que muitas das mortes acontecem entre os maiores de 65 anos, principalmente aqueles com doenças pré-existentes.
Mas por que a gripe de Hong Kong foi tão agressiva?
Primeiro, porque o vírus causador daquela pandemia (o H3N2, que ainda circula pelo mundo, algo que especialistas dizem que pode acontecer ao Sars-CoV-2) é considerado uma das cepas de gripe mais problemáticas.
Tal qual o vírus da covid-19, é especialmente contagioso e tem uma alta capacidade de matar.
Um vírus que muta
“Trinta e sete anos depois, o subtipo H3N2 segue reinando como o vírus de influenza O mais importante e mais problemático para nós humanos”, afirma o pesquisador Edwin. D. Kilbourne em seu trabalho “Pandemias de influenza no século 20”, publicado em 2006.
As evidências indicam que as verdadeiras pandemias surgem do rearranjo genético dos vírus de influenza A animal.
Foi exatamente essa capacidade de sofrer mutações significativas que tornou o H3N2 imune às vacinas existentes na época.
A chave de sua agressividade reside na mudança de padrão.
“Os vírus de influenza mudam constantemente”, explica o Centro Nacional de Vacinas e Doenças Respiratórias dos Estados Unidos (NCIRD). “São pequenas mutações que podem dar lugar a mudanças nas proteínas da superfície do vírus” que, segundo o órgão, fazem com que o sistema imunológico não o reconheça.
O que podemos aprender com aquela pandemia?
As reações à gripe de Hong Kong e ao novo coronavírus tem sido parecidas em diversos aspectos.
Mas ainda que distanciamento social, campanhas de higiene das mãos e recomendações para evitar o transporte público tenham sido adotados, cidades não adotaram quarentenas e todo mundo ainda trabalhava.
Escolas permaneceram abertas, competições esportivas foram mantidas e a economia continuou crescendo, embora a um ritmo mais lento.
Naquela época, a imunidade de grupo não foi atingida. Ou seja, não se chegou a um patamar de pessoas infectadas (e depois imunizadas) tão alto a ponto de haver um efeito parecido ao da vacinação em massa.
Veio então uma segunda onda, ainda mais forte.
“A gripe de Hong Kong teve uma primeira onda suave no inverno de 1968-69, mas possivelmente mutou significativamente e produziu uma segunda onda que, na Europa, se deu em dezembro de 1969”, relata Erkoreka.
Esta foi muito agressiva e teve ampla repercussão nos meios de comunicação da época, mas foi rapidamente esquecida.
O historiador acredita que, como acontece agora, aquela pandemia se amplificou por ter sido subestimada por governantes.
“Autoridades e epidemiologistas fracassaram na Espanha e na Europa porque não aprenderam com as grandes epidemias do passado”, diz ele.
“Eles devem ter claro em suas mentes que quanto mais cedo agirem e adotarem medidas, menores os danos.”
Cristina J. Orgaz – @cjorgaz
BBC News Mundo
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